» » » Os espíritos da Feira de São Joaquim: frequentadores garantem assombrações e incorporações; "já vi muitas coisas"

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João Bonfim, que trabalha na Feira de São Joaquim, em Salvador, há mais de 50 anos, se arrepia quando conta das visões que já teve nos corredores da feira que, durante o dia, está sempre cheia de gente. O problema, como comenta ele, que já dormiu por lá muitas vezes, é à noite. “Já vi muitas coisas aqui. Coisa de assombração, já vi. Eu dormia em cima dos barracos. Ficava com medo, aí, saía daquele lugar e ia para outro”.

Antigamente, como relata o prancheiro, uma parte do fundo da Feira de São Joaquim funcionava como um matadouro de porcos. “Tinha muito rato também”, relembra. Para João, que ainda se recorda bem dos porcos sendo levados vivos até o fundão, esse é um dos motivos para o local ser assombrado. Ainda hoje, há muitas histórias de pessoas que, assim que entram na feira, começam a sentir enjoos e dores de cabeça. João já ouviu falar em todas elas: “Muita gente já morreu aqui dentro no passado. Aí, o pessoal vem. O espírito, né!?”.

O historiador, professor e consultor Rafael Dantas explica que, em uma cidade como Salvador, que já foi um grande porto escravista, histórias de terror como essas se espalham facilmente, e por todo canto. O motivo: os relatos dos horrores sofridos pelas pessoas que chegaram aqui escravizadas se misturam à própria estrutura da cidade, especialmente do centro, que foi construído debaixo de açoites. Cada prédio que existe ali, como o Mercado Modelo, as igrejas e o Passeio Público, por exemplo, guardam histórias de pessoas que morreram antes de a obra terminar.

“Essas histórias já são muito antigas. Histórias que falam sobre assombrações, vultos e almas penadas nos antigos sobrados e igrejas da Bahia foram recorrentes no decorrer dos séculos 18 e 19, ou mesmo em épocas anteriores. Temos relatos da tradição oral que falam sobre isso. Muitas dessas histórias estavam associadas à questão da escravidão. Justamente por conta dos horrores que os escravizados sofriam, muitas dessas histórias de fantasmas acabavam, de uma forma ou de outra, tocando ou fazendo menção aos escravizados que foram mortos, assassinados e violentados de alguma forma”.O mototaxista Carlos Eduardo, que trabalha na região da feira há seis anos, já até cansou de ouvir sobre as lendas e a espiritualidade forte do local. “Já ouvi dizer da história dos negros que trabalhavam aí, há muitos anos, quando era tudo lama. Já ouvi falar dos espíritos que continuaram. Morreram muitos negros ali dentro. Provavelmente, é onde eles vivem, por causa desse sofrimento”.

TRADIÇÃO ORAL

Quando a gente fala na Feira de São Joaquim, que foi construída após o incêndio que destruiu a antiga feira de Água de Meninos, em 1964, a gente fala de uma área que é descrita pelo historiador Rafael Dantas como um antigo entreposto comercial. “Ali é justamente esse lugar de encontro. O incêndio marcou muito aquela época, e foi muito traumático para os comerciantes que trabalhavam naquela região”.

O espaço, que fica à beira mar, começou a tomar forma de feira por causa do Porto de Salvador, que fica ali pertinho, no Comércio. No livro "Bahia: imagens da terra e do povo", publicado em 1961, o jornalista baiano Odorico Tavares descreve bem o cotidiano da região de Água de Meninos.

“Todos os dias, a feira prossegue (...). Os barcos chegando e saindo, são saveiros que vêm de todas as partes do Recôncavo. Trazem os mais variados produtos da terra baiana; bananas em cachos semiverdes, laranjas, cerâmica, aipim, os quiabos para os mais coloridos carurus, a pimenta malagueta de fascinantes efeitos”, escreve.

E é por isso, como explica Rafael, por causa desse vai e vem de gente de todo o estado e de fora dele, que esses relatos se espalharam tão facilmente. Onde tem gente, tem história.

“No caso da Feira de São Joaquim, esses relatos são de antigos feirantes, da tradição oral, de que há uma série de assombrações, de vultos. Por que? Ali, no final do século 18 e início do século 19, era uma zona portuária importante, um lugar de entreposto comercial, de parada de pequenos barcos, saveiros, entre outros navios. Na época da construção, das reformas que foram feitas naquela região, inclusive na construção dos sobrados e das igrejas, muitos escravizados morreram”.


Mas, por mais que os relatos sejam inúmeros, não há documentação que dê conta de comprovar todas as histórias. Elas só resistiram, como aponta Rafael, porque foram passadas de pai para filho, de um século para o outro. “São mais registros orais, que são passados dos mais velhos para mais novos. A importância dessas histórias da tradição oral para a nossa cultura é, antes de qualquer coisa, uma resistência. É um traço de uma força de saberes populares que perpassam séculos”.

Rafael Nunes, que trabalha como prancheiro na feira há três anos, nunca viu nada, mas já sentiu - especialmente quando fica por lá até mais tarde, tomando uma cervejinha com os colegas. “É um vulto, uma coisa diferente. Dá trabalho. Às vezes, não quero ir embora. A gente toma uma cerveja aqui, o tempo passa rapidinho, as horas passam. Aí vem um negócio meio estranho, aquele vulto. Eu quero ir para casa, mas sinto: ‘Fica aqui’. Uma sensação de uma coisa estranha”.

O fato de Salvador ter tantas construções centenárias em ruínas também ajuda a fomentar a criação e a popularização de histórias de assombração. Os filmes de terror mais clássicos geralmente se passam onde? Em uma casa abandonada.

“A monumentalidade, a suntuosidade das construções, dos ossuários, como na Igreja de Santa Luzia, ali no Pilar, instiga ainda mais o imaginário popular relacionado a essas histórias de fantasma. Outro ponto importante é a questão da ‘cidade em ruínas’. Tem muitas construções que já eram abandonadas antes, que já estavam decadentes, as colunas, a parte dos cais, armazéns antigos. Essa monumentalidade das construções, ligada a esse cenário de ruínas, possibilitava que o imaginário ligado a fantasmas tivessem um campo fértil para se desenvolver”.

ENERGIA

Além das histórias de fantasma, a Feira de São Joaquim que, além de produtos alimentícios, também vende diversos tipos de artigos religiosos, também é conhecida por ter uma energia muito presente, espiritualmente falando.

Vanessa Costa, que trabalha em uma loja na feira há dois anos e meio, diz que é muito comum que pessoas de santo incorporem entidades assim que chegam na porta. “Acho que, por aqui ter muitas casas de orixás, de Candomblé, tem alguma coisa que influencia. A maioria das pessoas quando entra aqui, principalmente se forem pessoas de religiões de matriz africana, se manifesta. A gente fica até achando que é brincadeira. Quando a gente observa, realmente. Criança, adultos, a gente sempre presencia. Acho que tem alguma entidade, alguma coisa, que fica aqui na entrada”.

A sacerdotisa do Centro de Umbanda Mística Oxum Apará, Mãe Taiane, garante que há uma explicação: primeiramente, todas as pessoas, religiosas ou não, são médiuns. Mas, quando alguém está iniciando em uma religião de matriz africana, é mais difícil ter controle sobre a mediunidade - o que pode levar a essas incorporações não esperadas. “A incorporação é muito visceral. Médiuns que estão iniciando no processo, muitas vezes, não têm controle. Sentem a energia, sentem o lugar, e, a depender, não conseguem controlar”.

Para ela, a Feira de São Joaquim não é um local energético apenas por vender objetos e produtos religiosos, mas por toda a história que carrega. “A Feira de São Joaquim é um local muito forte, não só por hoje ser uma feira de artigos religiosos de matriz africana. Foi um local onde teve toda a história da escravização em Salvador, no porto, naquela região. Então, já é um local em que a energia é muito densa, muito forte”.

Mãe Taiane, que cresceu em um terreiro de Umbanda, conta que toda essa energia acumulada já fez até gente que estava começando a duvidar da fé voltar a acreditar. “Já tive um caso de uma pessoa que estava em dúvida da religião e, quando chegou na feira, incorporou. O guia veio, ou o Orixá, para dizer: ‘Eu estou aqui, eu existo, é visceral’. O campo vibratório, o campo energético desse lugar tem história, tem muita coisa ali. Traz toda uma ancestralidade”.



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